Culpa e dor sem fim
A dor é infindável na casa do agricultor José Edmário Ferreira Santana, homem de olhos vivos, sinceros. Não parece ter 35 anos. Quem o vê, olha no olho, conhece um pouco da sua tristeza, lhe dá muito mais, tamanho o abismo em que vive com a família. A dor é tamanha. Está por toda parte. Nos ombros, na mente e no coração do agricultor. Perdeu o prumo desde que a filha mulher, a bela Rayanne da Silva Santana, 14 anos, eleita miss mirim de Afogados da Ingazeira, no Sertão do Pajeú pernambucano, morreu numa moto. E o perdeu duas vezes. A primeira, ao ver a filha amada, cuidada, idolatrada, estirada morta embaixo de um caminhão. A segunda, ao saber que foi o filho mais velho, 17 anos, também amado ao extremo, quem pilotava a 250 cilindradas que se chocou contra o veículo. Dirigia mesmo sem ter habilitação, usar capacete ou possuir idade para conduzir uma moto.
A culpa também é infindável na casa de José Edmário. Persegue-o. Anda junto com a dor que o dilacera dia após dia, seguindo-o, ao lado dele, onde quer que vá. É fácil vê-lo chorar pelos cantos e chorar com ele. Depois da morte de Rayanne, o lugar preferido é um sítio de sua propriedade, na região, onde pode gritar a dor que sente. Pela morte da filha, pela angústia do filho. Sim, seu Edmário responsabiliza o motorista do caminhão velho com o qual a moto dos seus filhos se chocou, também sem habilitação. Mas a culpa maior traz para si, coloca no ombro como uma cruz, carregando-a por onde passa, onde for. Culpa-se por ter comprado a moto e por deixar o filho dirigi-la. Não estimulava a pilotagem, mas sabia que utilizava. Fazia vista grossa, como o fazem muitos pais do interior, onde as motos viraram bicicletas.
Me sinto até mais culpado do que meu filho
– Eu sei o meu erro. O quanto errei ao deixar meu filho andar nessa moto... O homem do caminhão também tem culpa, estava sem habilitação, dirigia um veículo caindo aos pedaços, que até hoje está circulando. Mas sei do meu erro” – lamenta José Edmário.
– Se eu disser que não me sinto culpado estou mentindo. Me sinto sim... Me sinto até mais culpado do que meu filho. Porque se eu não tivesse comprado essa moto, talvez não tivesse acontecido. Mas carregando ou não culpa, não tenho mais o que fazer. Minha Rayanne se foi...” – sofre.
– Às vezes você não que negar um bem para o filho e deixa. Mas eu dizia, deixe você ficar de maior, habilitado, eu dou uma moto, um carro. Mas são teimosos. Você sai, dá as costas e ele pega. E a Justiça não quer saber se você deixou ou não. É como uma faca. Você deixa em casa e um filho pega e se mata. Você tem culpa?” – indaga, na angústia.
Rayanne estava na garupa do irmão quando a morte chegou. Morreu pelas mãos dele, para aumentar ainda mais o sofrimento da família. A mãe, a auxiliar de enfermagem Lucineide da Silva Lima, precisou viajar para não enlouquecer. Para tentar esquecer. Afastar-se por algumas semanas das lembranças da filha, impregnadas por toda a casa, nas fotografias mantidas sobre a estante e a mesa da sala, no quarto rosa, ainda intocado, cheirando a ela. Não cabia em tanta dor. Precisou caminhar para tentar aliviar o sofrimento.
A moto, uma 250 cilindradas, era muita moto para um garoto de 17 anos, que por mais prática que pudesse ter, não tinha maturidade para resistir às tentações da velocidade, da aventura. Pessoas contam que, no dia do acidente, em junho de 2014, ele corria ladeira abaixo, meio que provocando a irmã, na garupa, agarrada aos livros. O irmão ainda freou quando o caminhão surgiu do nada, no meio do cruzamento. Mas era tarde. Rayanne escapou da garupa e foi parar embaixo do veículo, já morta pelo impacto.
– Foi uma barra quente. Até hoje a gente sofre com isso. Sofre pela perda dela e sofre por ele. De comentar. Sofrer por ela faz ele sofrer também. Quando começamos a falar sobre o acidente ele sai de perto. Sofreu e sofre muito...” – conta o agricultor.
O jovem tenta se refazer do peso da culpa, aliviada pouco tempo atrás por um sonho com a irmã. Nele, Rayanne dizia que a culpa não era do irmão amado. Havia chegado a hora dela. Mas a família segue sofrendo. É a dor dentro da dor. A sina da família de José Edmário.
– A saudade, ela mata a gente. É algo que destrói. Querer ver, pegar, cheirar aquela pessoa e não poder. Pensei em me matar algumas vezes, mas Deus não deixou. Na hora, não conseguia. Deus não permitia. Dizia: suporte porque você não é sozinho. Tem uma família para cuidar. Mas um dia, eu sei, vou me encontrar com ela. Sei que está me esperando...” – sonha.
Fonte: http://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/filhos-da-dor/culpa-e-dor-sem-fim.php
Nenhum comentário:
Postar um comentário